terça-feira, 23 de novembro de 2010

Aspectos processuais e Eficácia da Lei Maria da Penha

INTRODUÇAO

O presente trabalho tem por objetivo analisar os aspectos processuais da Lei 11.340 de 2006, intitulada por Lei Maria da Penha, que trouxe ao âmbito normativo a tutela às mulheres vitimas de violência doméstica e familiar. A partir dela se introduziu no ordenamento jurídico previsões que tem desdobramentos em diversos ramos do direito: direito penal, direito civil, administrativo, entre outros. Fruto desta característica, a Lei Maria da Penha, tem incidência hibrida e desafia os operadores do direito a uma atuação multidisciplinar no intento de garantir sua eficácia.
A positivação da proteção à mulher vitima de violência, decorre da necessidade de abarcar no âmbito dos interesses públicos o enfrentamento a esta forma de violência especifica tratando, portanto, este problema social, que até então ficara relegado ao espaço das relações privadas. Esta concepção é sem duvida, êxito das mobilizações sociais, dos movimentos feministas e de mulheres, que nas ultimas décadas vem denunciando as formas de violências em que elas ficam submetidas. Especialmente no espaço das suas relações de afeto mais próximas, onde majoritariamente figuram como agressores aqueles que são seus companheiros, maridos, enfim pessoas das mais íntimas relações. Esta afirmação fica evidentemente exemplificada na história da mulher, brasileira, que dá nome a referida legislação, que fez da sua tragédia pessoal, uma atuação que colaborou para o avanço na proteção de milhares de mulheres.
Interessa para este trabalho verificar, inicialmente, as características desta violência específica, que deu origem a esta legislação especial. Buscando na segunda parte deste estudo, tratar objetivamente dos aspectos processuais, daqueles que foram formulados pelo legislador quando da aprovação da Lei em 2006, analisados em conjunto com as formas, que vem sendo consolidada no âmbito prático, a sua aplicação.


I. A VIOLENCIA OBJETO DA LEI MARIA DA PENHA

A violência que objetiva ser enfrentada, através da Lei Maria da Penha, é aquela exercida contra as mulheres, nas relações privadas, denominada por violência doméstica e familiar, e de forma mais abrangente: violência sexista . Propriamente por conta de que, é o elemento de gênero que tende a determiná-la. O bem tutelado, é portanto, a dignidade da mulher, para além do aspecto físico, alcançando sua integridade moral e material. Esta forma de violência específica, que não se restringe a violência física, posta como objeto de análise, conduz a afirmação de que são as relações de poder que se estabeleceram e se modificaram ao longo da história, entre homens e mulheres que fundamentam tal violência.
Deste modo, a base material para os processos de violência sexista, são estas relações hierarquizadas e valorizadas distintamente, para homens e para mulheres, em espaços determinados pela construção de esferas de relações públicas e relações privadas. Dito de outra maneira, o que sustenta a existência da violência contra mulher são as relações desiguais que se processam no âmbito concreto entre os diferentes gêneros. Conforme afirma Faria, (2005, pg. 23): “A violência doméstica e sexual, ou violência sexista, é a expressão mais dura da opressão das mulheres. Sabemos que é fruto das relações desiguais e de poder entre homens e mulheres, que expressam de forma mais contundente as contradições dessa relação de poder”.
Decorrente de uma cultura patriarcalizada, a desigualdade que advém das relações de gênero, conta também com um elemento de naturalização, a partir do qual se tornou possível, encobrir a realidade de violência por longo tempo e tratá-la como parte natural dos destinos das mulheres, fazendo disso, um ciclo ininterrupto de sofrimentos e distanciamento das mulheres de uma experiência digna de vida.
A naturalização da violência se dá pela naturalização das desigualdades entre homens e mulheres. E conta com instrumentos constitutivos das relações entre os indivíduos na sociedade pelas quais se atribuem papéis diferentes aos gêneros, apresentados ora como destino, ora como determinação biológica. Estes papéis socialmente construídos orientam os homens para uma atuação na esfera pública, da produção, do provimento, enquanto às mulheres para os espaços privados, as tarefas de reprodução e manutenção do espaço doméstico e da família.
Aliada à naturalização destas desigualdades, que por muitas vezes faz da vitima culpada, está à impunidade, que permitiu a banalização da necessidade de tratamento da violência como questão de interesse coletivo. No que pese que o próprio ordenamento jurídico, já tratasse da proteção da dignidade de todos, incluindo a proteção as mulheres, o célebre adágio popular “em briga de homem e mulher ninguém mete a colher”, fez com que esta forma de violência especifica, ficasse a margem de um tratamento especifico por parte do direito enquanto interesse público. E assim associando esta violência a larga impunidade, onde os agressores atuavam, presumindo a falta de sanção mais efetiva, as mulheres situam-se em permanente estado de insegurança, coação e ameaça, perante as condutas violentas.
No Brasil , identificam-se altos níveis de violência doméstica e familiar e seguindo uma tendência pela natureza de tal fenômeno, tem como agressores as pessoas das suas relações de afeto, maridos, companheiros, amantes, parentes. De tal forma que o monitoramento da aplicação da Lei Maria da Penha, reiteram as informações das pesquisas realizadas, anteriores a ela, quando demonstram que a incidência da Lei recai justamente nos casos em que as relações entre os sujeitos que mantém se pela afetividade.
Resta então, finalidade de grande dimensão, justificando a necessidade de uma legislação especial, que tratasse dessa violência que se consolidou como componente das relações de gênero. Isto foi possível pelo reconhecimento de que determinadas condicionantes, para o acesso a um status de dignidade e igualdade, devem ser viabilizados no âmbito dos interesses públicos e coletivos. No aspecto normativo, estas exigências foram trazidas pela Constituição Federal de 1988, que tratou na ordem dos direitos fundamentais e os objetivos da república a dignidade da pessoa humana e a igualdade, como pressupostos de realização da sociedade democrática.

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. (SARLET, 2004, pg. 59)

Em reconhecimento a exigência de que o direito se ocupasse da violência sexista, como violência especifica, tem-se na ratificação pelo Brasil da Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) que colocou o desafio de reconhecer nesta forma de violência específica um impedimento de acesso aos preceitos da Constituição. Estes imperativos universais e constitucionais, associados sempre, aos processos históricos, políticos e sociais, que lhes consolidaram como garantias, que constituem a base legal, da Lei 11.340 de 2006, denominada e não por mero acaso como Lei Maria da Penha.

A Convenção de Belém do Pará é o primeiro instrumento internacional de proteção dos direitos humanos a reconhecer de forma enfática, a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado, que alcança, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, um elevado numero de mulheres. A convenção afirma que a violência contra a mulher constitui grave violação aos direitos humanos e ofensa a dignidade humana, sendo manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres. [...] A luz desta definição, a violência contra mulher é concebida como um padrão de violência especifica baseado no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico a mulher. (PIOVESAN, 1998, pg. 147)

É neste escopo jurídico que surge a Lei Maria da penha, que vem justificada a partir da realidade de violência que estão submetidas às mulheres brasileiras, e que sua finalidade está caracterizada por dispensar tratamento desigual às situações que tenham natureza na desigualdade. Afinal a constitucionalização do princípio da igualdade remete ao cabimento de tratamento igual aqueles que estão em mesma condição e o diverso deve ser compreendido como verdadeiro aprofundamento das desigualdades.

Invoca-se a igualdade entre homem e mulher que está na Constituição, para questionar a constitucionalidade da lei Maria da penha. No entanto, ela veio exatamente para atender o desígnio constitucional. Não há nada mais desigual do que tratar igual os desiguais. A única forma de implementar a igualdade é enxergando a diferença, diferença até hoje invisível em relação á violência doméstica. Há outro fato. Esta é uma lei afirmativa e, como tal, dispõe de público determinado. Trata-se de um microssistema construído pelo gênero da vitima: ser mulher. Assim confesso que não consigo visualizar qualquer mácula de inconstitucionalidade neste diploma legal. (DIAS, 2006).

O desafio com a consolidação da legislação especial no ordenamento nacional é identificar pela experiência no plano concreto, seu grau de eficácia e aplicabilidade. Neste sentido, a análise dos institutos processuais da própria lei e subsidiariamente do Código brasileiro de processo penal e de processo civil, podem ensejar reflexões uteis sobre sua capacidade em promover uma realização adequada das previsões legais, no sentido de atender as finalidades que se deseja que esta legislação traga a vida das mulheres.

II. A LEI MARIA DA PENHA NO AMBITO PROCESSUAL PENAL

Indispensável abordar a Lei Maria da Penha, no aspecto penal, haja vista que, o espaço de incidência, tem como ultima medida, este ramo do direito. Contudo, não se pode desconsiderar que os aspectos processuais, implicam uma analise das questões de procedimentos, de outras áreas do direito, considerando o caráter hibrido de tal normatização. Aqui o objetivo é tratar dos aspectos processuais na esfera penal, em especial no que se refere à competência e aos procedimentos de aplicação das medidas protetivas que são instrumentalizadas por esta legislação.
No que se refere à competência, a Lei Maria da Penha, prevê a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica, estes cumulariam as matérias civis e penais, que contenham na demanda a incidência da violência doméstica. Disso decorrem duas questões importantes: a capacidade de estabelecimento deste subsistema institucional , e a superação dos Juizados Especiais da Lei 9099 de 1995, para atender as causas fundadas na violência qualificada pela Lei Maria da Penha.
A indicação de criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica demonstra a nítida opção do legislador em afastar o tratamento desta modalidade de violência no âmbito do Juizado Especial regido pela Lei 9.99/95. Intenção esta que vem expressa na própria lei em seu artigo 41: “Aos crimes praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.9099, de 26 de setembro de 1995”.
Tal definição considerou a realidade da abordagem destas demandas no espaço dos Juizados Especiais, que até 2006, lhes apreciava como crime de menor potencial ofensivo. De modo que, a solução dos conflitos de violência doméstica era caracterizada por sanções incapazes de romper os ciclos de violência que os sujeitos envolvidos estavam submetidos. Assim, o repúdio a pratica corrente nos Juizados Especiais Criminais, foi de dimensão tamanha, que no texto da Lei, em seu Artigo 17, o legislador proíbe expressamente a aplicação de pena alternativa, na forma de cesta básica. No que pese a ausência de técnica legislativa do referido texto, a finalidade dele foi reconhecer que do ponto de vista, da eficácia social, a conduta empreendida nos Juizados Especiais Criminais, acabou por banalizar o tratamento dado as situações de violência na esfera jurídica.

Os Juizados Especiais Criminais, criados pela Lei 9099/95, significaram uma verdadeira revolução no sistema processual penal brasileiro. Uma justiça consensual possibilita a aplicação de pena mesmo antes do oferecimento da acusação e ainda antes da discussão da culpabilidade. As medidas de despenalizaçao, bem como a adoção de um rito sumaríssimos, buscam a agilização no julgamento dos delitos de pequena potencialidade ofensiva, levando ao desafogamento da justiça comum. Uma maior celeridade na tramitação das ações – impedindo, por conseqüência, a ocorrência da prescrição – empresta uma maior credibilidade ao Poder Judiciário. [...] Trata-se de uma verdadeira transação penal, da qual a vitima não participa. Este contexto está contribuindo para que se chegue a um alarmante nível de violência, que só agora vem despertando a atenção de todos. Assim, não se pode deixar de concluir que a Lei veio na contramão da história. Ao desburocratizar a Justiça Criminal, acabou mais uma vez por sacrificar a mulher. (DIAS, 1999).

De outro modo, o afastamento das causas oriundas dos processos de violência doméstica, dos procedimentos do Juizado Especial Criminal, ao mesmo tempo em que, buscou atender um clamor de importantização de tais demandas, desconsiderou os princípios do Juizado Especial organizado pela Lei 9.099, fundamentais para o tratamento célere que se exige para esta modalidade de violência.
De toda sorte, a divergência sobre a desconsideração dos Juizados Especiais para o tratamento da violência doméstica, continua sendo divergência na doutrina. De forma que, uma análise mais racional das diferentes posições pode conduzir a uma noção de limitação quanto à eficácia da tutela a mulher processada pelo rito processual comum. Comprometendo em algumas situações inclusive a sua segurança de forma mais imediata. Outrossim o afastamento da incidência do Juizado Especial Criminal, mantém a necessidade de observação das condutas dos operadores do direito, na medida em que, não há garantias de que estes não venham a reproduzir a banalização da violência domestica, já reconhecida no âmbito do Juizado Especial Criminal, em outras instancias jurisdicionais.
Todavia, a prática jurídica, nestes quatro anos de interpretação e aplicação da Lei Maria da penha, já vem construindo respostas a determinadas questões que ficam latentes na apreciação dos casos concretos. Neste sentido, ao passo que os crimes saíram da competência do Juizado Especial, as contravenções enquanto, classificação de infração penal não igualmente taxativas no Artigo 41 da Lei 11.340, mantém-se, portanto, na esfera de competência dos Juizados especiais criminais.
Esta é a elaboração do I Fórum Nacional de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (FONAVID), realizado em 2009, através do Enunciado número 8 , que convencionou a orientação de que o Artigo 41 da Lei Maria da Penha, não se aplica a contravenções. Outros indicativos de ordem processual são identificados entre os Enunciados do I FONAVID, entre eles destacam-se:
Enunciado n. 6: que trata da possibilidade de aplicação de penas substitutivas previstas no Código Penal, restringindo a previsão da Lei Maria da Penha apenas aquelas penas alternativas que ela trata expressamente: cesta básica e multa de forma isolada; Enunciado n. 10, que permite a aplicação da suspensão condicional do processo quando for cabível; Enunciado n. 7, que permite a aplicação do SURSIS, previsto no Artigo 77 do Código Penal.
Na abordagem sobre competência, a Lei Maria da Penha, ao afastar a incidência do JECRIM, propõe a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica, que reúne competência civil e criminal, logo, desafia a criação de um subsistema especial, abrangente de demandas que até então se dividiam entre as varas criminais e de família. A instalação destes Juizados vem ocorrendo gradativamente, onde se justificam conforme a realidade local. Assim, são processadas pelas varas criminais as demandas em cuja localidade, não for viabilizada esta instancia especial de violência doméstica, com ênfase as medidas protetivas de urgência. E conduzidas às varas de família, as questões que a elas forem pertinentes.
Afora estes elementos, importante analisar que as medidas cautelares, interpostas para concessão de medidas protetivas, seguem o rito amparado pelo Código Civil, o qual exige o ajuizamento de uma ação principal no prazo de 30 dias . Tais ações serão processadas e analisadas pelas varas de família, como apropriadamente trata o enunciado número 3 do I FONAVID. Não obstante, tem prevalência sobre a competência dos Juizados Especiais de Violência Doméstica, a soberania constitucional concedida ao Tribunal do Júri , que é peremptório nos julgamentos dos crimes dolosos e contra vida, desconsiderados se praticados sob a égide da violência doméstica, ou não.
Ao tempo em que a Lei Maria da Penha veio redimensionar as instancias de tratamento das demandas decorrentes de violência domestica, ofertou um conjunto de instrumentos de intervenção imediata, que visam estancar as manifestações de violência. As denominadas medidas protetivas, ficam à mão do aplicador do direito e da própria ofendida, adequando sua medida de aplicabilidade a situação concreta, considerando a intenção de cessar tal violência sobre a vítima. Sendo através delas que se pode evidenciar meios de efetividade da referida legislação.
Conforme balanço, apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça, até novembro de 2008, (o qual compreende dois anos de vigência da Lei Maria da Penha) tramitavam na Justiça 150.532 processos, destes 41.957 decorrentes de ação penal e 19.803 de ações cíveis. Sendo que do total apresentado 78.829 foram sentenciados e destes 2,4% tiveram efeitos de detenção do agressor. No mesmo período em que se contabilizou 150.532 processos de violência doméstica, foram concedidas 19.400 medidas protetivas. No Rio Grande do Sul através do Cadastro de Violência promovido pelo Ministério Público Estadual , identificam-se um total de 11.361 processos registrados, entre as Medidas protetivas concedidas, destacam-se: a proibição de aproximação do agressor a vítima, concedidas em 5.233 (46%) dos casos; da proibição de aproximação, com 4.628 (40%) de medidas concedidas; seguidas da medida de afastamento do agressor do lar, que totalizam 3.225 medidas concedidas, correspondentes a 28,4% dos casos registrados.
Percebe-se na pesquisa, também, que perfil da violência que moveu a estrutura judiciária fundadas na condição de gênero, nestes últimos três anos, consolida as pesquisas que foram pauta de denúncias acerca do quadro de violências que elas estão submetidas. Reiteram que as agressões desencadeadas contra a mulher ocorrem majoritariamente no âmbito doméstico (dos 11.365 casos sistematizados no rio Grande do Sul , 8.783, 77,3% ocorreram na residência); e que tem como sujeito ativo, o companheiro ou marido (dos casos registrados, 4.611 foram de ameaça contra ex-esposa ou companheira o que corresponde a 40,6%; seguido de lesões corporais contra ex-esposa ou companheira, que totaliza 3.228 dos casos, equivalente a 28,4%.
Preliminarmente é possível visualizar que a finalidade que vem sendo dada aos institutos punitivos da nova Lei, não são aqueles que reduzem a liberdade do agressor, e sim, as medidas que dialogam com a necessidade de estancar processos de violência. Neste sentido, as medidas protetivas, são eficazes quando induzem uma perspectiva de realização da Lei e tem se mostrado como possível resposta a proteção buscada pelas mulheres quando leva suas demandas a esfera jurisdicional. Onde o caminho de resolução de conflito está em maior medida, residindo em uma atuação do Estado, como força de mediação de um conflito e ponderação de interesses, onde se podem construir parâmetros de gradativo rompimento de ciclos de violência.

CONCLUSAO


A validade da Lei Maria da Penha se justifica a partir de dois elementos. Primeiramente, na constatação de que dentro do arcabouço normativo vigente, não se efetivou a promoção da dignidade de um grupo especial de sujeitos: as mulheres. De modo que, disso decorre a necessidade de provocar esta eficácia a partir de instrumentos que tratem desigualmente, estes que não estão em igualdade de condições que outros segmentos sociais.
Segundo elemento de justificação é a necessidade de que os problemas decorrentes do fenômeno desta violência sejam assumidos, como de interesse coletivo através de uma atuação na esfera pública das relações sociais, encerrando por vez, o insistente caráter privado que se deu a estas manifestações durante largo período histórico.
Os procedimentos inovadores trazidos pela Lei Maria da Penha, ensejaram uma mobilização prática e intelectual em determinados aspectos, desafiando os operadores do direito a uma multidisciplinaridade, integrando e superando a rigidez que separa os diferentes ramos do direito, seja no aspecto material e processual. Assim, passados quase cinco anos de sua vigência a prática interpretativa e de aplicabilidade, já vem construindo respostas e alternativas as iniciais e importantes polemicas em torno de determinados aspectos apresentados por tal legislação.
Soluções estas que, só são possíveis, perante a realidade dos casos levados as jurisdições competentes. E que podem gozar de validade, na medida em que, se tornam capazes de atender teleologicamente a existência da Lei Maria da Penha. Deste modo, a interpretação e aplicação que vem do espaço jurisdicional serão eficazes quando realizarem dentro dos limites normativos, sua parte para administração dos conflitos de violência doméstica, como colaboração ao rompimento dos ciclos de violência. Para tanto, a aplicabilidade da Lei Maria da Penha, vem demonstrando a partir das medidas protetivas, seu potencial de produzir eficácia e legitimidade social.
Resta afirmar, que o transito da competência dos juizados especiais da Lei 9.099 de 1995, por si só, não garante a importantizaçao que esta modalidade de violência requer dos operadores do direito. Igualmente, há que se avaliar permanentemente a capacidade dos procedimentos comuns, atenderem as exigências de celeridade e prontas respostas aos conflitos caracterizados na violência doméstica, sob pena de fazer suas vitimas, duplamente afetadas.
Ademais, não se pode olvidar que a superação dos ciclos de violência doméstica e familiar contra mulher, dada sua natureza fundada na desigualdade de gênero, requer muito mais que uma solução normativa. Dito de outra forma, a existência da Lei Maria da Penha, no que pese ser um avanço para as condições de vida das mulheres, não é um fim em si mesmo. Mas é um instrumento, indispensável que associado a outros requisitos que se relacionam as práticas sociais, nos coloca no caminho de superação desta forma especifica de violência, que é sem dúvida um impedimento às mulheres a uma experiência de vida digna e livre de opressões.


**Sirlanda Selau, academica da Faculdade de Direito da Escola Superior do Ministério Público RS

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Reflexões sobre autonomia e poder

O direito ao aborto, discutido em diversos sentidos, necessariamente remete a questão de autonomia das mulheres sobre a sua própria vida, e isto é inevitável. É por tratar de relações de poder, que se constitui como uma pauta polemica, e uma das que mais evidencia as brutais relações de opressão que se exerce sobre as mulheres. Portanto, querer tratar da questão do aborto, sem afirmar que este só será legal e seguro para todas quando o Estado assumir que autonomia é um direito inerente a pessoa humana, é desconsiderar o nexo, que justifica e fundamenta a necessidade da legalização dos métodos abortivos.
O movimento feminista trouxe ao debate público a questão da autonomia das mulheres, como cerne para um processo de transformação que desconstruísse as relações de opressão, fazendo iguais e livres, ambos os gêneros. Mas este não pode ser compreendido como um conceito que reclama somente o interesse de um grupo social. A questão da autonomia permeia o conjunto de interesses que compõem as relações sociais e por isso, deve ser incorporada como uma garantia conquistada pela humanidade, na realização da paz social e da dignidade coletiva.
No Brasil, embora a realidade demonstre que milhares de mulheres praticam aborto, e que grande parte delas sofre as conseqüências, pagando não raramente, com a própria vida, a penalização do aborto segue tratada a mãos fortes. Com o acumulo de diversos retrocessos, nas ultimas décadas, onde tem destaque a rejeição do Projeto de Lei que retirava a criminalização do aborto, em 2008, e mais recentemente a condução dada ao Plano Nacional de Direitos Humanos; a pauta trazida pela apreciação do estatuto do nascituro; e o proposto cadastro obrigatório das mulheres grávidas.
O que nos apresentam é que a posição sobre a autonomia como elemento que justifica a legalização do aborto, é uma concepção das relações de poder, a partir do olhar feminista, e não pode ser adotada pelo Estado. No entanto, escondem que a pressão da Igreja Católica e das estruturas patriarcais, é nada mais que também uma concepção das relações de poder, onde a mulher sempre estará subjugada. É por isso que a questão do aborto deve ser pontuada, a partir da autonomia, pois o que está em jogo, são as relações de poder que se estabelecem na sociedade.
Esconder o real debate na questão do aborto permite obscurecer os interesses que acabam prevalecendo e condenando milhares de mulheres. Permite passar incólume o poder que é exercido para condicionar a vida delas. Ao mesmo tempo em que, demonstra toda a incapacidade do Estado laico, em ser uma realidade, e não meramente uma promessa. É neste lastro que as forças conservadoras, recrudescem seu domínio e aprofundam as relações desiguais, mantendo também a partir do controle dos corpos das mulheres, os seus interesses e mecanismos de poder. Posicionar-se no debate sobre o aborto, neste sentido, é manter a hipocrisia e um obstáculo entre as mulheres e seus direitos.
É pela relevância que carrega o conceito de autonomia, que o aborto, sua legalização ou penalização, torna-se uma questão estratégica. Pois na medida em que as mulheres conquistam autonomia, alteram as relações de poder impostas. E isto não é interessante para quem domina. Portanto e em essência o debate sobre o aborto é uma questão sobre poder, sobre autodeterminação, sobre conciliação de interesses opostos, e finalmente: autonomia.
Os que se filiam a invisibilidade do debate sobre a autonomia das mulheres, estão colaborando para que o poder de construir uma trajetória de vida, para as mulheres, não esteja nas mãos delas; mas nas mãos e a serviço dos interesses dos que fizeram ao longo da historia a trajetória das mulheres como um destino fadado à dominação, a exploração e a desigualdade.

domingo, 7 de novembro de 2010

Das coisas que incomodam....

Enquanto assistimos o encerramento do processo eleitoral, satisfeitos com mais uma demonstração que indica um caminho de consolidação da forma democrática no país, ainda tão recente, ainda tão desafiadora, surgem manifestações que não passam despercebidas, ou não deveriam. 
A jovem estudante de direito que resolveu, através da internet, manifestar adjetivos insólitos aos nordestinos, por conta do resultado eleitoral, merece repúdio por afirmações infelizes, que denotam, muito mais que um sentimento semeado durante a própria campanha, pelo representante da oposição, que pretendeu enterrar o debate político e dar vida a um discurso perigoso e velho conhecido, dos habitantes abaixo da linha do equador.
O inconformismo da menina, imediatamente com os nordestinos, é mediato dos conservadorismos que se tentou colocar na gaveta e lá cerrá-los, tamanha vergonha ele produz.  É a herança de um passado de obscurantismos que deu conta de uma cultura determinista, que pensa a sociedade brasileira atual, nos padrões aqueles que as elites dominantes até décadas recentes, apresentaram como únicos. Entre os quais, a idéia de que a pobreza latente neste país era intransponível e que a distribuição das riquezas, que todos produzem, eram bens naturalmente exclusivos das classes já mais privilegiadas.
O inconformismo dela, embora tosco, é o não aceitar que a prática cotidiana provou que outros caminhos são possíveis. Que não há predestinação quando de trata de promover acesso ao direito universal, preconizado pelo direito contemporâneo, na compreensão de que a promoção da dignidade humana é um desafio a ser superado pelas sociedades desenvolvidas. E que promover isso, é também, enfrentar as desigualdades sociais, de modo que, todos tenham acessos aos bens que condicionam uma vida digna, e de que o Estado deve ser um instrumento para alcançar tal status. De forma que aqui, tornar-se um debate de classe, daqueles que insistem em tratar esta sociedade complexa, no paradigma do privilégio que não se justifica mais, frente a tantos outros, que não desistiram de fazer o impossível, possível.
A inversão das vocações do Estado, que incomoda a jovem, traduzido de forma lamentável pela sua inadmissível manifestação, é algo que me incomoda também, mas em diferente perspectiva. Incomoda o sentimento reacionário que impregna a juventude e os isenta de um papel fundamental nas necessárias transformações sociais que precisamos ver acontecer. Incomoda ver que o processo eleitoral serviu também para abrir esta gaveta cerrada do nosso passado, onde a intolerância, a xenofobia e preconceito, são pressupostos para rasgar as garantias constitucionais que conquistamos a duras penas e a custa de muitas vidas.
Mas por mais que incomode tal atitude, serve para deixar-nos alertas, quanto à necessidade de zelar pela democracia como um bem, que não pode ser ameaçado, pelos neo-conservadores de ocasião, e que não pode retroceder, pois foi através dela que iniciamos nossa tão curta e tão desafiadora trajetória de conquista de uma igualdade substancial.
Ademais, se a jovem não sabe fazer contas, não foi apenas os nordestinos que escolheram a presidente eleita. Entre os supostos superiores eleitores da região sul e sudeste estão espalhados vários, que escolheram as mudanças que estão construindo um novo país, e que elegeram a presidente em importantes colégios eleitorais, nestas regiões afora o nordeste. Assim, vai ser difícil a pretensa jovem cumprir seu desejo separatista, pois em todas as regiões estão estes, que mais uma vez venceram o medo, mais uma vez venceram as mentiras reiteradas que rebaixaram a campanha e tentaram enterrar o bom debate político de rumos do país. Venceu a esperança, venceu a verdade, venceu a democracia. Talvez seja mais fácil a jovem separar-se de seu ranço conservador e descabido na nossa sociedade. Pois se foi a consciência nordestina que venceu a eleição, somos todos nordestinos.
  

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

um pouco deste momento: 500 anos esta noite, por pedro Tierra

De onde vem essa mulher
que bate à nossa porta 500 anos depois?
Reconheço esse rosto estampado
em pano e bandeiras e lhes digo:
vem da madrugada que acendemos
no coração da noite.

De onde vem essa mulher
que bate às portas do país dos patriarcas
em nome dos que estavam famintos
e agora têm pão e trabalho?
Reconheço esse rosto e lhes digo:
vem dos rios subterrâneos da esperança,
que fecundaram o trigo e fermentaram o pão.

De onde vem essa mulher
que apedrejam, mas não se detém,
protegida pelas mãos aflitas dos pobres
que invadiram os espaços de mando?
Reconheço esse rosto e lhes digo:
vem do lado esquerdo do peito.

Por minha boca de clamores e silêncios
ecoe a voz da geração insubmissa
para contar sob sol da praça
aos que nasceram e aos que nascerão
de onde vem essa mulher.
Que rosto tem, que sonhos traz?

Não me falte agora a palavra que retive
ou que iludiu a fúria dos carrascos
durante o tempo sombrio
que nos coube combater.
Filha do espanto e da indignação,
filha da liberdade e da coragem,
recortado o rosto e o riso como centelha:
metal e flor, madeira e memória.

No continente de esporas de prata
e rebenque, o sonho dissolve a treva espessa, recolhe os cambaus, a brutalidade, o pelourinho,
afasta a força que sufoca e silencia
séculos de alcova, estupro e tirania
e lança luz sobre o rosto dessa mulher
que bate às portas do nosso coração.
As mãos do metalúrgico,
as mãos da multidão inumerável
moldaram na doçura do barro
e no metal oculto dos sonhos
a vontade e a têmpera
para disputar o país.

Dilma se aparta da luz
que esculpiu seu rosto
ante os olhos da multidão
para disputar o país,
para governar o país.

Brasília, 31 de outubro de 2010.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Invisibilidade da Violência contra a mulher, acesso à Justiça e Legitimação social: Reflexões sobre a eficácia da Lei Maria da Penha na vida das brasileiras



Sirlanda M. Selau da Silva[1]

RESUMO

O presente artigo aborda a natureza da violência contra a mulher, como processo construído socialmente, a partir da constituição e naturalização das desigualdades entre os gêneros, frente ao paradigma de afirmação dos direitos humanos e fundamentais. Outrossim, sobre o prisma da aplicação da Lei Maria da Penha, identifica os aspectos que dialogam com a sua eficácia, especialmente através do debate sobre o acesso à justiça e sobre a legitimidade social. De tal modo, que a pesquisa evidencia o potencial instrumento que se caracteriza através da eficaz aplicação desta Lei, que associado a um processo de reversão dos elementos que fundam as manifestações de violência, aponta para um processo de desconstrução das desigualdades e realização da justiça.

INTRODUÇÃO

As formas de violência contra mulher compõem uma parte invisibilizada da história da humanidade. É recente o reconhecimento deste fenômeno como interesse público, ou seja, para além das relações e interesses privados. O que desafia a sociedade e o direito, posto que estas manifestações de violência constituem-se como óbice aos direitos fundamentais como realização, especificamente as mulheres.
A Lei Maria da Penha é fruto do reconhecimento da devastadora presença da violência no âmbito privado, que se processam no lar e entre os mais próximos entes que compõem as relações de afeto, destinando proteção específica as mulheres, vulnerabilizadas pelo grau de desigualdade que se estabelece nestas relações. Cuida-se de uma violência que se caracteriza necessariamente a partir de relações de poder, e por isso, tende a situar-se, enquanto exercício, entre os indivíduos que historicamente estão posicionados conforme a hierarquia social de oposição e desigualdade entre os gêneros.
Importa neste trabalho, uma reflexão sobre quais são os elementos que possibilitam uma sistematização sobre a eficácia da Lei Maria da Penha.
Para tanto, estrutura-se em dois momentos, partindo da identificação da violência ora em análise, sua natureza e constituição, pelo desenvolvimento de processos de desigualdades, como componente permanente das relações de poder entre homens e mulheres. Através da análise dialética da doutrina sobre os direitos fundamentais, e a elaboração feminista, determina um objeto mais abrangente, que no caso é a violência sexista, para, na segunda parte do estudo, analisar aplicadamente aspectos da legislação, que trata da violência doméstica e familiar.
Deste modo, a sistematização das divergentes posições da doutrina, e das pesquisas que tratam da aplicabilidade deste diploma legal, se propõe a subsidiar as reflexões sobre a eficácia da Lei. No sentido, de analisar a sua capacidade de produzir efeitos e transformações no cotidiano marcado pela violência doméstica. Com isso, identificando as perspectivas que se colocam como instrumento de efetivação dos direitos das mulheres enquanto experiência concreta, para além das normas afixadas no ordenamento jurídico nacional.

I. A violência sexista

Compreender os processos de violência em que está submetida parte expressiva das mulheres requer analisar a história das sociedades e reconhecer que as relações desiguais construídas entre os gêneros são base material para estas manifestações que afetam a dignidade e o status de igualdade garantido a todas as pessoas, indistintamente a sexo, raça, crença e etnia, no longo percurso de elaboração e afirmação dos direitos humanos.
Esta forma de violência específica, que não se restringe a violência física, posta como objeto de análise, denota as relações de poder que se estabeleceram e se modificaram ao longo da história. No entanto, perpetuam-se em mesmo grau, como relações hierarquizadas e valorizadas distintamente, para os homens e para as mulheres, em espaços determinados pela construção de esferas de relações públicas e relações privadas. Conforme afirma Faria, (2005, pg. 23): “A violência doméstica e sexual, ou violência sexista, é a expressão mais dura da opressão das mulheres. Sabemos que é fruto das relações desiguais e de poder entre homens e mulheres, que expressam de forma mais contundente as contradições dessa relação de poder”.
A naturalização das desigualdades entre homens e mulheres é o mecanismo que dá o suporte necessário a sua manutenção. Estes ocorrem pelas formas e instituições que constroem os indivíduos (família, escola, religião), onde socialmente se atribuem papéis diferentes aos gêneros, apresentados ora como destino, ora como determinação  biológica, mas que necessariamente opõem-se quanto às posições, esferas e consideração entre ambos. Decorre, portanto, as constatações de um direcionamento destes papéis para a atuação dos homens na esfera pública, da produção, do provimento, enquanto às mulheres os espaços privados, as tarefas de reprodução e manutenção do espaço doméstico e da família.
A violência, como manifestação extrema de um poder construído socialmente e naturalizado de forma a se manter, coloca as mulheres em permanente condição de coação, invocando a posição da vitima como culpada, quando frente à violência sempre busca uma justificação na atitude da mulher, que deixou de alguma forma de cumprir seu papel socialmente estabelecido.
Ao lado da naturalização destas desigualdades, da transição da condição de vitima à culpada, está à impunidade, que marca profundamente estes processos de violência. Durante majoritário período a não reconhecimento da problemática da violência contra as mulheres, como de interesse social, e a resignação destes desdobramentos a esfera familiar, ou seja, que perpassava ao largo do interesse público para efetivação de um ambiente integral de direitos, o que só favoreceu a legitimação das formas de violência sexista, como componente pré-determinado da trajetória de relação entre homens e mulheres.

1. A desigualdade como parte da história
No Brasil que tem população majoritariamente feminina[2], identificam-se altos níveis de violência doméstica e familiar[3], onde os agressores são pessoas das suas relações de afeto, maridos, companheiros, amantes, parentes. Uma forma determinada da violência sexista que se processa na intimidade, na convivência, onde estão albergadas as relações afetivas, de compartilhamento das responsabilidades e satisfatividade familiar. Sendo uma realidade premente a ser enfrentada pela sociedade no sentido de reversão das desigualdades e do rompimento dos ciclos de violência que estão submetidas milhares de brasileiras.
Contudo, as formas de violência contra a mulher, estão extensas as diversas ordens de relações que estabelecem no meio social. Seja aquela que se dá na tipificação do assédio moral, nas relações de trabalho; nas distintas valorizações e remunerações do trabalho produtivo das mulheres[4]; no não reconhecimento do trabalho reprodutivo realizado no espaço doméstico[5]; na associação da imagem da mulher ao consumo[6]; no controle sobre o corpo e a sexualidade das mulheres; nas práticas de tráfico sexual; na exploração da prostituição[7]. Logo, o alcance e a variedade das formas de constituição das desigualdades e submissão da mulher, não se limitam à esfera privada, mas excedem para outras relações, também marcadas por processos de violências.
Dizer que a desigualdade é causa da violência sexista, é também evidenciar que a desigualdade é companheira da mulher ao longo do tempo. A superação do período medieval onde todos estavam subjugados ao poder do soberano, por atribuição divina, pelo Iluminismo, não teve o condão de incluí-las na promoção dos direitos ora advindos deste momento histórico. Nesse sentido, afirma Porto (2007, pg. 16): “as revoluções liberais, não obstantes contarem com efetivo apoio do gênero feminino, não dividiram igualitariamente as conquistas de direitos, ficando os homens evidentemente beneficiados”.
Contudo o reconhecimento das dimensões de direitos humanos, que tem como precedente os direitos incorporados a partir da Revolução Francesa, partem destes, passando pelas mudanças do Estado Social ao Estado Democrático de Direitos, por onde as mulheres foram também modificando sua participação social, seja pela conquista do sufrágio universal, pela organização política nos movimentos de mulheres e feministas, sem em nenhum momento dirimir por completo os laços de desigualdades permanecidos em diferentes formas.
No entanto, evidenciar a relação que se constituiu com a vinculação do escopo dos Direitos Humanos, aos direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos nacionais, permite encontrar no Direito, paradigmas importantes para enfrentar os processos sociais de desigualdade, especialmente quanto à realização destes na vida das pessoas. No caso das desigualdades de gênero, o trânsito do debate da violência sexista, do âmbito privado para o público, colocou a necessidade de erradicação da violência como pressuposto para a realização da dignidade humana[8], da igualdade e da autodeterminação das mulheres.
Desta forma esta modalidade de violência específica, realizada dos homens para com as mulheres, pela égide da cultura patriarcal, como já dito, justificada e naturalizada pelas estruturas sociais, tais como a educação, a família, a religião, entre outros, constituem como concreto impedimento colocado às mulheres para consolidação enquanto sujeito dos direitos humanos dissertados e conquistados pela humanidade na sua evolução.

2. Violência e a Maria da Penha

O reconhecimento da violência como um fenômeno a ser recepcionado no âmbito dos interesses públicos, bem como, a tutela dos direitos fundamentais, que reposicionaram a proteção dos direitos das mulheres no ordenamento jurídico nacional, tem como marco a Constituição Federal de 1988. Catalogaram-se os direitos fundamentais e os objetivos da república trazendo a dignidade da pessoa humana e a igualdade, como pressupostos de realização da sociedade democrática.
No mesmo sentido, a ratificação pelo Brasil da Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) recolocou o desafio de reconhecer nesta forma de violência específica um impedimento de acesso aos preceitos constituídos na Carta Magna. Estes imperativos universais e constitucionais, associados sempre, aos processos históricos, políticos e sociais, que lhes consolidaram como garantias, que constituem a base legal, da Lei 11.340 de 2006, denominada e não por mero acaso como Lei Maria da Penha.

A Convenção de Belém do Pará é o primeiro instrumento internacional de proteção dos direitos humanos a reconhecer de forma enfática, a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado, que alcança, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, um elevado numero de mulheres. A convenção afirma que a violência contra a mulher constitui grave violação aos direitos humanos e ofensa a dignidade humana, sendo manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres.
[...] A luz desta definição, a violência contra mulher é concebida como um padrão de violência especifica baseado no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico a mulher. (PIOVESAN, 1998, pg. 147)


Visto no sentido normativo tem-se, consolidados um instrumental essencial para o enfrentamento da problemática da violência sexista, demonstrada pela conjuntura da situação das mulheres brasileiras. Resta realizar esta potencialidade que reside na afirmação dos direitos fundamentais na vida concreta de suas, também, titulares.
É neste escopo jurídico que surge a Lei Maria da penha, que vem justificada a partir da realidade de violência que estão submetidas às mulheres brasileiras, e que sua finalidade está caracterizada por dispensar tratamento desigual às situações que tenham natureza na desigualdade. Afinal a constitucionalização do princípio da igualdade remete ao cabimento de tratamento igual aqueles que estão em mesma condição e o diverso deve ser compreendido como verdadeiro aprofundamento das desigualdades.
Esta premissa evoca a constitucionalidade da legislação, ora atacada, pois dispensa tratamento diferenciado aos sujeitos colocados em posição de hipossuficiência nas relações domésticas e familiares, conforme ensina Maria Berenice Dias:


Invoca-se a igualdade entre homem e mulher que está na Constituição, para questionar a constitucionalidade da lei Maria da penha. No entanto, ela veio exatamente para atender o desígnio constitucional. Não há nada mais desigual do que tratar igual os desiguais. A única forma de implementar a igualdade é enxergando a diferença, diferença até hoje invisível em relação á violência doméstica. Há outro fato. Esta é uma lei afirmativa e, como tal, dispõe de público determinado. Trata-se de um microssistema construído pelo gênero da vitima: ser mulher. Assim confesso que não consigo visualizar qualquer mácula de inconstitucionalidade neste diploma legal. (DIAS, 2006).


Ademais, a constitucionalidade da lei[9], reside nos seu caráter regulatório de disposição prevista na própria Carta Constitucional, quando trata dos princípios fundamentais, que versam sobre a dignidade da pessoa humana e do princípio da igualdade.


O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. (SARLET, 2004, pg. 59)


O bem protegido pela Lei Maria da Penha é em sentido lato a dignidade da mulher, nas relações intra-familiares e domésticas. Seja com um caráter de proteção da integridade física, ou ainda, moral e patrimonial, seja na previsão de medidas protetivas específicas e urgentes. A interpretação neste sentido, não é a literal sobre os dispositivos da Lei, mas sim teleológica, pelo seu conjunto, conjuntura e conteúdo. Compreender a finalidade da Maria da Penha é parte também da sua aplicação eficaz, para situar sua extensão e sujeitos a quem se destina[10], bem como, fazer sua aplicação constitucional nos casos concretos, também nesta questão do bem jurídico e sujeitos tutelados[11].


Parte, pois, o legislador hodierno da evidente constatação de que, em nossa sociedade, a mulher ainda é, reiteradamente, oprimida, especialmente pelo homem, e que tal opressão é particularmente mais grave porque ocorre principalmente no ambiente doméstico e familiar, sendo, por isso mesmo, a gênese de outras desigualdades. E enquanto persistir esta situação de violência contra a mulher, o Brasil não será uma sociedade nem livre, nem igualitária, nem fraterna e, conseqüentemente, não se caracterizará como um Estado democrático de direitos, objetivos fundamentais da República, sacralizados no pórtico da Carta Democrática de 1988.
Tem-se, pois, que a Lei 11.343 de 2006 tem por objetivo erradicar ou, ao menos, minimizar a violência doméstica contra a mulher. (PORTO, 2007, pg. 20).


Estes dois aspectos introdutórios acerca da Lei são indispensáveis para prosseguir na investigação que ora é empreendida, na busca de uma percepção sobre a eficácia da Lei Maria da Penha neste curto período de vigência: enquanto uma possibilidade de trânsito de uma igualdade abstrata a uma realização de igualdade concreta para as mulheres. Questões que se relacionam com a constitucionalidade, sujeitos e bem jurídicos tutelados, tratados como premissas, com a intenção de superar as divergentes posições já trazidas ao debate e aplicação destes dispositivos legais.
Assumindo, pois como base nesta análise que se trata de norma que goza legitima constitucionalidade e vem direcionada a tratar de público e objeto específico. Ao passo que se por mera interpretação literal da norma, possa parecer, uma afronta ao princípio da isonomia[12] e da igualdade, a percepção que privilegia o reconhecimento das especificidades como meio de promover a igualdade, torna a referida legislação como um caminho de realização do direito e da justiça.

II.  REFLEXÕES EM TORNO DA EFICÁCIA DA LEI MARIA DA PENHA

Analisar os efeitos que uma norma jurídica pode produzir pressupõe certa medida, verificar quais os parâmetros que se afirmam na sua aplicação, buscando identificar como ela se realiza a partir da sua condição abstrata as situações concretas, na vida das pessoas. Da vigência da Lei 11.340 datada de 2006 surgem elementos importantes de serem sistematizados para subsidiar a analise sobre a eficácia desta recente legislação, essencialmente em período futuro, onde a percepção de sua aplicação se possibilitará mais consolidada.
A presente abordagem ampara-se em duas questões para a identificação de elementos que denotam medida de eficácia da Lei, aspectos estes, que permeiam o debate sobre o acesso a justiça e quanto à necessidade de legitimação social.

1. Acesso à Justiça

A dinâmica de busca de proteção judicial as situações de violência pelas mulheres, é marcado pela inversão da culpabilidade, histórico que vem denunciado pelo movimento feminista, como uma manifestação das relações de poder caracterizado pela hierarquia e pela submissão, que faz da vitima culpada. Induz-se, portanto, que sua eficácia requer a superação valorativa conservadora da concepção por onde se operacionaliza o Direito no Brasil, especialmente no que tange a atuação das estruturas policiais e jurídicas.


Há pesquisas que demonstram o perfil altamente conservador dos agentes jurídicos que, em sua maioria, concebem o Direito como instrumento de conservação e contenção social e não como instrumento de transformação social. Esse perfil conservador dos agentes jurídicos tem implicado na reprodução de estruturas e categorias jurídicas tradicionais, construídas há quase um século, o que tem invisibilizado a tarefa de reconstrução do pensamento jurídico a luz de novos paradigmas e novas interpretações.
Essa postura implica em uma gravíssima distorção jurídica, na medida em que dispositivos igualitários e que transformam a condição jurídica da mulher prevista na Constituição Federal e em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, são interpretados a luz de categorias discriminatórias veiculadas por diplomas infraconstitucionais.
Esse fenômeno ilustra, não apenas o componente conservador, mas também privatista da cultura jurídica tradicional. A cultura jurídica brasileira prima pela ótica do privado, em detrimento da ótica publicista. (PIOVESAN, 1998, pg. 157)


A forma de questionar estas nuance valorativas características do procedimento jurisdicional, com a Lei Maria da Penha, vem na forma crítica especialmente quanto ao tratamento dispensado às demandas de violência doméstica, que até 2006 compunha as competências dos Juizados Especiais Criminais[13], criados pela Lei 9.099 de 1995. Desta forma, já se constitui como divergência na Doutrina:


Os Juizados Especiais Criminais, criados pela Lei 9099/95, significaram uma verdadeira revolução no sistema processual penal brasileiro. Uma justiça consensual possibilita a aplicação de pena mesmo antes do oferecimento da acusação e ainda antes da discussão da culpabilidade. As medidas de despenalizaçao, bem como  a adoção de um rito sumaríssimos, buscam a agilização no julgamento dos delitos de pequena potencialidade ofensiva, levando ao desafogamento da justiça comum. Uma maior celeridade na tramitação das ações – impedindo, por conseqüência, a ocorrência da prescrição – empresta uma maior credibilidade ao Poder Judiciário. [...] Trata-se de uma verdadeira transação penal, da qual a vitima não participa. Este contexto está contribuindo para que se chegue a um alarmante nível de violência, que só agora vem despertando a atenção de todos. Assim, não se pode deixar de concluir que a Lei veio na contramão da história. Ao desburocratizar a Justiça Criminal, acabou mais uma vez por sacrificar a mulher. (DIAS, 1999).


A reflexão sobre a não incidência da Lei dos Juizados Especiais, nos delitos de violência doméstica, denota muito mais uma crítica ao tratamento promovido na operacionalização do procedimento nesta instância, do que propriamente uma dispensa dos seus institutos e peculiaridades de celeridade processual.
De tal forma que, o questionamento depreende-se direcionado em maior medida, ao escopo conservador que rege as estruturas e aos operadores do Direito no país. Constituindo-se neste viés um primeiro aspecto relacionado ao acesso a justiça[14] que deve ser objeto de sistematização quanto à eficácia da Lei, no sentido de analisar, em que medida esta transferência de competência jurisdicional pode-se desdobrar em tratamento transformador nas estruturas judiciárias, com valorações e condutas interpretativas que se traduzam em realização da finalidade da Lei.

2. Legitimação social

De outra forma, a eficácia guarda relação com a legitimidade socialmente concedida à norma, do seu aspecto abstrato a aplicação no plano concreto. E neste ponto faz-se instrumental a sistematização dos dados de aplicação da Lei Maria da Penha, para ponderação de como ela tem conquistado adesão social, a partir do seu reconhecimento e das formas de sua aplicabilidade, para que se possam identificar alguns elementos que dialogam com a alteração do status de violência, sendo este o segundo aspecto de abordagem quanto à eficácia da Lei.
Conforme balanço, apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça, até novembro de 2008, (o qual compreende dois anos de vigência da Lei Maria da Penha) tramitavam na Justiça 150.532 processos, destes 41.957 decorrentes de ação penal e 19.803 de ações cíveis. Sendo que do total apresentado 78.829 foram sentenciados e destes 2,4% tiveram efeitos de detenção do agressor.
No mesmo período em que se contabilizou 150.532 processos de violência doméstica, foram concedidas 19.400 medidas protetivas.[15] No Rio Grande do Sul através do Cadastro de Violência promovido pelo Ministério Público Estadual[16], identificam-se um total de 11.361 processos registrados, entre as Medidas protetivas concedidas, destacam-se: a proibição de aproximação do agressor a vítima, concedidas em 5.233 (46%) dos casos; da proibição de aproximação, com 4.628 (40%) de medidas concedidas; seguidas da medida de afastamento do agressor do lar, que totalizam 3.225 medidas concedidas, correspondentes a 28,4% dos casos registrados.
Percebe-se na pesquisa, também, que perfil da violência que moveu a estrutura judiciária fundadas na condição de gênero, nestes últimos três anos, consolida as pesquisas que foram pauta de denúncias acerca do quadro de violências que elas estão submetidas. Reiteram que as agressões desencadeadas contra a mulher ocorrem majoritariamente no âmbito doméstico (dos 11.365 casos sistematizados no rio Grande do Sul[17], 8.783, 77,3% ocorreram na residência); e que tem como sujeito ativo, o companheiro ou marido (dos casos registrados, 4.611 foram de ameaça contra ex-esposa ou companheira o que corresponde a 40,6%; seguido de lesões corporais contra ex-esposa ou companheira, que totaliza 3.228 dos casos, equivalente a 28,4%.
Preliminarmente é possível visualizar que a finalidade que vem sendo dada aos institutos punitivos da nova Lei, não são aqueles que reduzem a liberdade do agressor, e sim, as medidas que dialogam com a necessidade de estancar processos de violência. Neste sentido, as medidas protetivas, são eficazes quando induzem uma perspectiva de realização da Lei e tem se mostrado como possível resposta a proteção buscada pelas mulheres quando leva suas demandas a esfera jurisdicional. Onde o caminho de resolução de conflito está em maior medida, residindo em uma atuação do Estado, como força de mediação de um conflito e ponderação de interesses, onde se podem construir parâmetros de gradativo rompimento de ciclos de violência. 
Quanto à percepção sobre proteção das mulheres introduzidas pela Lei que pretende inibir, quando não erradicar os ciclos de violência, pesquisas recentes aponta para um reconhecimento da Lei Maria da Penha como instrumento que auxilia no enfrentamento a violência doméstica.
A pesquisa promovida pelos institutos: IBOPE/THEMIS[18] em 2008 indica que 68% dos entrevistados conhecem a Lei Maria da Penha, sendo o maior percentual registrado nas regiões Norte e Centro Oeste, que é de 83%, seguidos da região nordeste com 77% e da região sul com taxas de 79% de conhecimento sobre a Lei. Registra ainda, uma percepção sobre a eficácia da Lei quanto a sua capacidade de inibir as situações de violência, onde 33% dos entrevistados acreditam que a Lei, pune a violência doméstica e 21% acreditam que a Lei pode evitar ou diminuir a violência contra a mulher. Os índices de conhecimento sobre a Lei Maria da Penha tiveram um aumento de 10% entre 2008 e 2009, partindo de 68% para 78%.
Todavia, mais que uma identificação estatística, pode ser construída a partir destes dados, que apontam as formas de como ela vem sendo aplicada e as percepções que a sociedade vem indicando sobre ela, uma afirmativa quanto ao seu reconhecimento social. Esta identificação da sociedade quanto à capacidade da Lei produzir efeito é indissociável dos elementos que decorrem do acesso à justiça e da capacidade da aplicação efetiva do que dispõe este diploma legal, ser traduzido em credibilidade junto aos sujeitos a quem se destina.
A conjugação destes dois aspectos que analisam a eficácia da Lei aponta elementos que tendem ao rompimento da lógica de impunidade e invisibilidade da violência doméstica. Ao passo que estes sempre foram condicionantes da realidade de violência que não só afastou as mulheres do encontro com seu status constitucional de igualdade, como também, fez-se tragédia pessoal na experiência de vida de milhares delas.

CONCLUSAO


Os fenômenos da violência sexista fundados nas desigualdades socialmente construídas entre homens e mulheres estão em frontal oposição à vocação do direito constitucional da dignidade da pessoa humana e da igualdade, e constitui-se como óbice a realização de uma igualdade substantiva entre os gêneros.
A eficácia dos instrumentos advindos com a vigência da Lei Maria da Penha, vistos pela percepção de que o direito pode produzir mudanças, deve superar o conservadorismo das valorações na estrutura judicial, de onde decorre parte elementar da necessária legitimação de sua aplicabilidade. Consolidando o interesse do Estado e da sociedade em interferir nestas manifestações, que embora se processe na esfera particular, veio acertadamente a ser amparada como interesse público.
Ademais, a Lei Maria da Penha, é um marco jurídico importante para incorporar na dinâmica social o compromisso de enfrentamento a violência, que terá êxito, pela aplicação da Lei e pela transformação das praticas cotidianas que ensejam a violência contra mulher. Neste intento, a produção de efeitos sobre a realidade de violência, requer o combate às desigualdades e o empoderamento dos sujeitos que a situação leva a tratar como vitimadas.
A conquista da Lei Maria da Penha pelas brasileiras e pela nação é um dos instrumentos que abrem caminho para realização de um ambiente de equiparação de direitos, promoção de igualdade e realização da justiça. A sua absorção plena no cotidiano das mulheres, pressupõe o enfrentamento das relações desiguais que se perpetuam nas formas de convivência e organização sociais. Na mesma medida em que, torna-se elemento imprescindível para a realização da igualdade como uma experiência concreta na trajetória de todas as mulheres.


REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS


COMPARATO, Fabio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Ed. Saraiva, 1999.

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DIAS, Maria Berenice. A Impunidade dos Delitos Domésticos. 1999. Disponível em <http://www.mariaberenicedias.com.br > Acesso em 02 de outubro de 2009.

______. Aspectos civis e processuais da Lei 11.340/06. 2006. Disponível em: < http://www.mariaberenicedias.com.br> Acesso em 6 de setembro de 2009.

FARIA, Nalu. Para a erradicação da violência doméstica. In: Feminismo e a luta das mulheres. São Paulo: Sempre Viva Organização Feminista, 2005.

GARCIA, Manuel Calvo. Transformações do Estado e do Direito. Do direito regulativo a luta contra a violência de gênero. Porto Alegre: Ed. Dom Quixote, 2007.

MENDES, Gilmar. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Ed. Brasília Jurídica, 2002.

PIOVESAN. Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1998.

PORTANOVA. Rui. Motivações Ideológicas das Sentenças. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 1994.

PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência Doméstica e Familiar contra a mulher – Lei 11.340/06 – análise crítica e sistêmica. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado,  2007.

SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

Pesquisas Analisadas:

IBOPE/Instituto Avon. Percepções e reações da sociedade sobre a violência contra a mulher. 2009.

IBOPE/THEMIS. Dois anos da Lei Maria da Penha: O que pensa a sociedade? 2008.

Ministério Público do rio Grande do Sul. Cadastro dos casos de violência doméstica. 2009.

Núcleo de Estudos de Gênero – PAGU/ Unicamp. Mapeamento das Delegacias da mulher no Brasil.2008.


[1] Graduanda do curso de Direito da Fundação Escola do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Artigo apresentado ao Premio Igualdade de Genero CNPQ-SPM, outubro de 2009.
[2]  Segundo a pesquisa PNAD de 2006, a população brasileira constituída por 187.228.000 de habitantes, destes 51% são de mulheres e 49% de homens.
[3] Conforme análise dos índices, em pesquisa estimuladas, quanto às formas de violência doméstica, atingem 43% dos entrevistados, enquanto, espontaneamente apresenta percentual de 19% das mulheres que já tenham sofrido algum tipo que considera violência intrafamiliar. A violência física corresponde a 33% destas mulheres que já sofreram violência, 24% representam ameaça com armas de fogo e cerceamento do direito de ir e vir,  22% através de agressões físicas, 11% por estupro conjugal ou abuso.  11% das mulheres declaram ter sido espancada por 10 vezes ou mais, enquanto, 4% declaram ter sofrido espaçamentos por mais de 10 anos ou a vida inteira. A mesma pesquisa evidencia que o agressor principal é o marido ou parceiro, em dados: estes participam em “53% nas ameaças a integridade física com armas e 70% nas ocorrências de violências em qualquer das modalidades investigadas, excetuando-se o assédio.” Estes dados têm como referência a Pesquisa Violência contra a Mulher, produzida em 2001, pela Fundação Perseu Abramo. Disponível em <http://www2.fpa.org.br> Acesso em 20 de setembro de 2009.
[4] Conforme aponta o IBGE, as mulheres ainda recebem 70% da remuneração masculina. Neste ano indicou que embora as mulheres tenham melhor nível de formação, continuam recebendo menos.
[5] A elaboração feminista, especialmente quanto à participação da mulher na economia, afirma a invisibilização do trabalho doméstico na economia mundial e discute o acumulo das tarefas domésticas as tarefas produtivas, como forma condicionante das desigualdades construídas em relação à mulher. Sobre este tema, ver: SCHWOBEL, Dominique Fougeyrollas. Trabalho Doméstico, Serviços Domésticos. In, (ORGS) FARIA. Nalu e NOBRE. Miriam. O Trabalho das Mulheres: Tendências Contraditórias. São Paulo: Sempre Viva Organização Feminista, 1999. Ver também: CARRASCO, Cristina. Para outra economia: una visíon desde la economia feminista. In: (comp.) FARIA, Nalu. Construir la igualdad. Peru: REMTE, 2003.
[6] Sobre este tema, ver: FARIA, Nalu. O Feminismo latino-americano e caribenho: perspectivas diante do neoliberalismo. In. Desafios do livre mercado para o feminismo. SP: SOF, 2005.  
[7] Sobre estes dois últimos temas ver artigo: POULIN, Richard. Quinze teses sobre o capitalismo e o sistema mundial de prostituição. In, Desafios do livre mercado para o feminismo. SP: SOF, 2005.
[8] Cf. SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 59. Segundo Sarlet....”temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para a sua vida saudável, alem de propiciar e promover a sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”
[9] Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal manifesta-se no seguinte sentido: “Sob o ângulo da igualdade, ressalta como princípio constitucional a proteção do Estado à família, afirmando que o escopo da lei foi justamente coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Ter-se-ía tratamento preferencial objetivando corrigir desequilíbrio, não se podendo cogitar de inconstitucionalidade ante a boa procedência do discrime.” BRASIL. STF: ADC 19/DF. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal > acesso em 18 de outubro de 2009. Refere-se também sobre a constitucionalidade da Lei, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. RS. TJRS. AC. Nº 70028890176. Disponível em <www.tjrs.jus.br> Acesso em 18 de outubro de 2009.
[10] Sobre os sujeitos alcançados pela incidência da Lei Maria da Penha, refere-se o Promotor de Justiça Mauro Fonseca Andrade: “De inicio parece-nos descabida a invocação, pura e simples, dos artigos 12 e 22 da Lei 11.340/2006, tal como fez a autoridade policial, a fim de buscar uma espécie de respaldo legal para seu pleito. Como se sabe, tais dispositivos são bem claros ao fazerem referência somente à violência doméstica e familiar contra a mulher. [...] Se a aplicação, por assim dizer, pura e dura da Lei 11340/2006 às vitimas masculinas de violência doméstica e familiar não se mostra viável, isso não quer dizer, por obvio, que o infante não mereça proteção penal do Estado, antes mesmo do inicio da ação penal.”. RS. MPRS. Em Protocolo-Geral 2.09.0084755-8, Pedido de Medida Protetiva e Representação.
[11] Sobre o tema manifesta-se o Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “Ainda que a Lei 11.340/06 contenha pontos polêmicos e questionáveis, não há que se falar em inconstitucionalidade da chamada Lei Maria da Penha, pois a interpretação do princípio constitucional da igualdade ou da isonomia, não pode limitar-se à forma semântica do termo, valendo lembrar que, igualdade, desde Aristóteles, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”. MG. TJMG. AC. N° 1.0672.07.245994-0/001. Disponível em <www.tjmg.jus.br> Acesso em 18 de outubro de 2009.
[12] Cf. MENDES, Gilmar. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Ed. Brasília Jurídica. Brasília, 2002, p. 207. Conforme Mendes,“[...] o princípio da isonomia pode ser visto tanto como exigência de tratamento igualitário, quanto proibição de tratamento discriminatório. [...] Tem-se ‘exclusão de beneficio incompatível com o princípio da igualdade’ se a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que estão em situação idênticas.”
[13] Ver: BRASIL. STJ. HC Nº 91540-MS (2007/0230894-9). Disponivel em <www.stj.jus.br> Acesso em 02 de setembro de 2009.
[14] Cf.  PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994, pg. 115. Segundo Portanova... “O movimento para acesso à justiça é, em última analise, um movimento para a efetividade dos direitos sociais. Trata-se de uma filosofia libertária, aberta socialmente e realista, que busca imperativa e ingentemente, métodos idôneos de fazer atuar os direitos sociais e uma justiça mais humana, simples e acessível.[...] As novas demandas obrigam uma metamorfose na abordagem individualista (tradicional) o Direito para um enfretamento coletivizado. Além disso – o que parece mais importante – muda a ótica de observação. Agora não mais prevalece o ponto de vista do produtor do Direito (legislador/lei, juiz/judiciário). Prevalece mais a ótica do consumidor do Direito e da Justiça.”
[15] Situam-se entre estas, quanto ao agressor: afastamento do agressor do lar; prestação de alimentos provisionais; proibição de aproximação; proibição de contato e de freqüentar determinados lugares; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes; suspensão ou restrição de porte de armas. Em relação a vitima: afastamento da mesma do lar; encaminhamento da ofendida e seus dependentes a programa oficial, ou não, de proteção ou atendimento; recondução ao lar; separação de corpos; e medidas protetivas de caráter patrimonial: prestação de caução provisória por perdas e danos materiais; proibição temporária de atos e contratos de propriedade comum; suspensão de procurações conferidas ao agressor pela ofendida.
[16] Os dados sistematizados pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul compreendem o período de dezembro de 2008 a setembro de 2009, foram disponibilizados pelo Centro de Apoio Operacional Criminal, e abrangem 121 comarcas do Estado.  Compõe uma das atividades destacadas ao Parquet pela Lei Maria da Penha, no intuito de criar um banco de dados que propicie a analise da reincidência das situações de violência, bem como, a formulação de políticas públicas e estratégias que colaborem com a erradicação deste fenômeno social. Destaca-se que a realização do Cadastro pelo Ministério Público deste estado é pioneira no Brasil, e veio acompanhado, de um conjunto de iniciativas que visam adequar e capacitar as estruturas e os agentes do poder judiciário para recepção e operacionalização qualificada dos procedimentos introduzidos pela Lei Maria da Penha.
[17] Dados extraídos do Cadastro de Violência do Ministério Público do Rio Grande do Sul supra-citado.
[18] Dados extraídos da Pesquisa: Dois anos da Lei Maria da Penha, o que pensa a sociedade. Elaborada pelos Institutos IBOPE e THEMIS no ano de 2008. Disponível em< /www.observatoriodegenero.gov.br> Acesso em 20 de outubro de 2009.